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sábado, 19 de janeiro de 2013

Cinza


A questão toda é este lugar. Que faço meu, ao qual eu ligo toda a minha vida, só porque você existe largamente nele. Não importa o que venha fazer aqui... Sempre quando eu passo por aquele portão, o primeiro rosto que me vem à mente é o seu. Sem máscaras. Sem solicitações ou entregas. Mas só a sua presença já é um convite delicado e rude para que eu sucumba. 
Por ilusão de ótica, eu vejo seus braços abertos para mim, no fundo de um precipício. E aí me lanço, sorrindo. Como se a vida não fosse muito mais que meu suspiro embriagado antes de fechar os olhos e pular no buraco negro onde toda claridade que há é a sua pele, que ainda por cima é morena.
Estou ensandecida. Porque se nada faz sentido e sei disso, mas insisto... Deveria prontamente esperar minha interdição. Chega a ser patética a forma como eu me largo nos cantos estratégicos desse lugar, só para milimétrica e cronometradamente me encontrar com você, casual e acidentalmente. Tudo tem que estar alinhado: de onde você vem, por onde vai passar, onde eu vou estar. E claro, nossa trilha sonora tocando no seu melhor modo estéreo dentro da minha cabeça. E depois a frustração de não ter controle remoto para pausar a cena, voltar, e assistir você passando em câmera lenta sob meus olhos até o fim dos tempos.
Sei que tenho que gastar isso. Até a última gota. Precisa acabar. Precisa passar. Eu preciso voltar à minha normalidade de moça recatada. Porque ultimamente, por sua causa, tenho vivido constantemente em chamas. E só o que se pode esperar de uma fogueira são as cinzas no fim. Tudo que se entrega ao fogo - e vive nele - fada a sua existência a reduzir-se a um punhado de pó acinzentado, depois que toda a fumaça se perder no ar.



quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Amado

Amado,
Peço licença para lhe chamar assim depois de tanto tempo. São cinco anos? Veja você, quase seis. Quando eu dizia que seria para sempre, não imaginava de verdade que levaria esse monte de nada existente entre nós tão adiante assim. Peço uma licença ainda maior para lhe escrever mais um dos meus textos onde você nunca vai pôr os olhos. E isso até me faz lembrar os poemas que lhe fiz e que você chegou a ler, do meu próprio punho. Mas já nem importa. Depois que desisti de ser embarcação à deriva no seu mar, esqueci de como se fazem as rimas. E o mais trágico: esqueci o caminho da praia. Esqueci como se faz para amar. Mas isso também não importa. Se importasse, esse texto seria uma cobrança infeliz, amarga e cheia de mágoas. Coisa que não é. Não mais.
Não que fosse lhe interessar saber, caso você lesse isto aqui, mas queria lhe dizer o que foi feito de minha vida depois que deixamos de ser o que nunca fomos. Cortei o cabelo, entrei para a faculdade, fiz duas tatuagens, entrei numa banda que toca música de gente grande, ganhei alguns quilos (não muitos), coloquei um piercing, comecei a trabalhar, voltei a me tatuar (assumindo meus impulsos cantantes). Cresci. Me tornei uma mulher. Vivi coisas que me deram prazer, mas agora me pergunto até que ponto isso tudo foi de fato amor próprio e auto-suficiência, se a cada sorriso que eu dava, eu desejava que você visse a minha glória absoluta com a sua ausência. Como se cada conquista ainda girasse em torno de você, a partir do momento que eu lutava pela minha própria felicidade só para jogá-la na sua cara. Acho que esse processo todo não foi realmente crescer. Mas acredito, no final das contas, que o crescimento tenha chegado, de alguma forma. Porque ando querendo ser feliz por mim. Ou tentar sê-lo, com o que eu tenho, embora não tenha tido o que mais quis. Você sabe o que é. E você é aquilo que sabe.
Mas também é verdade que eu tenha recobrado minha sanidade quando se trata de você... E de gostar de você, principalmente. Não fazia muito sentido cobrar amor eterno de alguém que era só um menino. Hoje eu sei. Estávamos sintonizados em fases diferentes da vida. Me desculpe pela raiva que nutri por você. Foi a mágoa, filha da cegueira que não me deixava ver que o fato de não sermos um não era o fim do mundo, nem fazia de você vilão. Me perdoe. Eu ainda creio que do lado esquerdo do seu peito bata um coração nobre. Nós é que não deveríamos ter sido. E não fomos. Ainda bem, porque talvez nós tivéssemos sido uma verdadeira tragédia. E não restaria nada de bom, como agora eu sei que restou. Porque infantilidades à parte, sei que você desperta o melhor de mim. Não mais o altruísmo cego, mas o sentimento mais puro e bonito. Eu, tão cheia de falhas e pecados, sendo capaz de amar assim... E eu nunca lhe agradeci por salvar minha alma do limbo. Obrigada, minha mais doce penitência.
A questão dessa coisa toda ser sofrida - para mim - vem do vazio. Eu dizia que não te amava mais, por ter arrancado você do meu coração. Mas nunca pus ninguém no seu lugar. No começo era uma espécie de luto amargo, excesso de respeito pela memória do nosso amor enfermo. Depois foi só que eu não achei ninguém que combinasse com os aposentos reservados a você, no meu coração. É como se eu tivesse um mansão, e ao invés de dar aos hóspedes a suíte master, só conseguisse oferecer a eles a pequena dependência de empregada, escondidinha ali na área de serviço, sabe? Por vergonha de só conseguir dar tão pouco, eu terminei fechando a hospedaria antes de abri-la. Ninguém merece mendigar migalhas. Sei que parece absurdo estar disposta a dar tão pouco de mim, com tanto espaço "sobrando". É absurdo, mas ninguém cabe no lugar que foi seu, e o fato de ele estar vazio, faz dele sempre cheio da sua ausência. Faz dele sempre seu. Ninguém vai morar naquela suíte. Isso não quer dizer que eu não vá dar espaço para alguém, um dia. Com uma boa reforma, afastando as paredes, o espaço disponível pode se tornar muito maior e a sua suíte pode minguar, sem deixar de existir. O problema é que para começar as obras, antes de tudo, eu tenho que entrar no seu quarto. Já tentei algumas vezes, mas sempre termino saindo de lá correndo, porque dói. Dói abrir a porta e ver gravadas nas paredes todas as promessas que eu lhe fiz em silêncio, tanto amor unilateral nos porta-retratos e tanto calor sob os lençóis com os quais eu lhe cobria todas as noites, lhe entregando aos cuidados do seu anjo da guarda, e morrendo de inveja dele, achando-o o ser mais afortunado da criação, só por poder velar a sua vida inteira. Mas um dia eu vou ter força para queimar o forro, botar o colchão no sol, jogar fora os porta-retratos, e derrubar umas duas paredes, para construir outras duas mais recuadas, diminuindo seu ambiente, seu santuário dentro de mim.
Eu precisava lhe escrever hoje para botar isso pra fora. É que às vezes, mesmo comumente não sofrendo mais, eu fico cheia de nós dois até a borda, e preciso me esvaziar. No mais, obrigada por cada riso bobo que você, sem nenhum esforço, estampou nos meus lábios. Apesar do choro, eles também existiram. E acho que valeram a pena. Que amor não vale? Mesmo que a gente não seja amado de volta, alguma coisa a gente aprende e de algum jeito a gente cresce. E por falar em crescer... Teria a maturidade lhe alcançado? Sim, porque eu ainda lhe observo. Mais longe do que antes, com uma frequência ínfima, dando menos relevância aos fatos da sua vida na minha... Mas eu vejo. Força do hábito, talvez. Ou talvez seja verdade que o amor nunca foi coisa que se esqueça.
Eu mudei muito. Mas você também mudou. Para melhor, espero. De verdade, do fundo do coração. Me dá paz ver você bem. Fique sempre assim. De vez em quando - bem de vez em quando mesmo - me dá uns surtos e eu choro. Choro de ver os sonhos que eu tive pra gente se tornando realidade, me excluindo do elenco. Choro de saudade por não poder mais pensar em você daquele jeito, que me fazia feliz com muito pouco, quase nada. Choro por eu ter crescido e ter deixado de acreditar em contos de fadas. Mas no tempo que eu ainda acreditava, quero que saiba, que você foi o conto de fadas mais bonito que eu já li. Bate até um orgulhinho de escritora presunçosa, se eu pensar no aspecto de que a nossa história eu escrevi sozinha. Foi uma bela história, ainda que não tenha se concretizado. Que bom. Porque todo concreto - mesmo o mármore, que é bonito e que brilha - é duro e gelado. E nas nossas páginas, cabe muito calor e muita maleabilidade.
Se só um de nós pudesse ser plenamente feliz, me daria alívio saber que esse alguém é você. E não se trata mais de altruísmo. É que, modéstia à parte (pelo menos uma vez na vida), eu sei que sou mais forte, aguento o tranco de umas tristezas de vez em quando, até preciso delas para me construir cada vez melhor. Das poucas tristezas que eu não suportaria, uma delas seria ter de ver você triste. O resto são os restos... E eu me resolvo com eles. Seja feliz, por favor. Se você olhar pra trás, vez em quando vai me ver à espreita de seus passos, talvez com lágrimas nos olhos, mas sempre carregando um sorriso, que mesmo molhado de água e sal, será sincero.

Sempre com a lembrança do afeto mais belo,
aquela que foi sua, mesmo sem você tê-la aceitado,
Caterina.