Marcadores

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Amor de bus


Corri pra pegar o ônibus e quase que o perdia. Estava lotado. Assim que passei pela catraca, o avistei. Não pude mais tirar os olhos dele. Dei graças a Deus quando fui me locomovendo pelo corredor e o moço que estava sentado ao lado dele acenou para mim, me dando o seu lugar, porque desceria na próxima parada. Destino, quem sabe.
Ele estava com o cabelo meio bagunçado, uma camisa social clara, por fora da calça jeans surrada e com as mangas dobradas na altura dos cotovelos. Era um tipo engomadinho quase despojado, ou um tipo largado tentando ser arrumadinho. Não sei ao certo. Mas era encantador. Ah, se era. Trazia o cheiro do perfume masculino que eu mais gostava, misturado ao cheiro da própria pele, formando um aroma especial. Muito provavelmente eu não estava perto dele o bastante para fazer uma constatação desse tipo, minha imaginação aguçada deve ter me ajudado.
E eis que o fato encontrou sua consumação quando reparei que dos seus fones de ouvido vazava a voz de Elis Regina. Só poderia mesmo ser um sinal: ele gostava da minha cantora preferida. Encontrei o homem da minha vida num dia qualquer, dentro de um ônibus que eu costumava pegar todos os dias, nos mesmos bat-local e hora.
Terminamos nos casando. Tendo três filhos e um cachorro. Passando todas as tardes de sábado do resto das nossas vidas no parque. Tocando violão e cantando músicas de Elis aos domingos. Compondo dezenas de rocks rurais. Plantando nossos amigos, discos e livros e nada mais. Não necessariamente numa casa no campo.
Mas nossa vida inteira juntos não durou mais que cinco minutos. Ele levantou, puxou a cordinha, pediu parada e desceu no ponto seguinte. Pedi o divórcio no ato. Nunca mais vi meu ex-marido. Nem sei como se chamava.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Ébano



Oi. Tô te ligando só pra dizer que tem cerveja aqui na minha geladeira e eu sempre achei deprimente demais beber sozinha. Olha, eu sei que já deve estar tarde no seu relógio, porque o meu já está marcando uma e trinta e sete, e é da manhã. Mas eu queria que você soubesse que ainda pode ser cedo na vida, pra gente, é só você querer. E eu tenho latas de cerveja na geladeira. Se eu tô bêbada? Só se for da sua ausência. O único porre que tenho tomado é do lugar vazio que você deixou, menino. Eu brindei o amor e você foi embora antes que eu sorvesse todo o líquido da taça. Eu não te bebi até o fim, você não tinha o direito de me deixar ainda.
Ei, por favor, volta. Eu tenho cerveja da marca que você gosta, e posso comprar cigarros pra você na banca da esquina também. Não tenho problema em voltar a ser fumante passiva outra vez. Que se dane minha bronquite alérgica. Prefiro ter pulmões fodidos do que um coração na merda. Tossindo eu não posso cantar? É. Mas eu não quero cantar sem você aqui, porque sem instrumento me acompanhando eu perco tom, e eu não sei tocar nada. Exceto você. Em você eu sei tocar como ninguém, você sabe. Sei de cor cada acorde sem vergonha do seu corpo. A gente devia esquecer essa nossa pausa, inventar um arranjo novo, quem sabe.
Não, eu não tô chorando. Tô chorando. Tô desesperada, porque sinto a sua falta. Não me venha dizer que eu sou uma pessoa maravilhosa, você não está aqui para ver como eu fico um saco sem você por perto. Nem eu posso comigo. Não é que eu não goste de mim. Eu me gosto, sim, mas gosto mais da gente. Talvez a única coisa que eu goste em mim seja a cor dos meus cabelos. Você já reparou como é difícil encontrar gente de cabelo - não castanho escuro - mas preto feito ébano, sem ser pintado? E a cor do seu cabelo é igual à cor do meu. A gente pode ter filhos de cabelo preto, e eu sempre tive compulsão por filhos morenos. Um bom motivo pra você voltar. Já tentei dormir, não consigo. Você já me causou insônia antes, só que foi de felicidade. Agora eu já não sei.
Olha, que coincidência! Tenho cerveja na geladeira! E tenho cerveja preta também. Preta que nem o meu violão que tá ali largado, sem você pra me ensinar a tocar nele. Preta feito a noite que é mais longa na minha cama vazia. Preta que nem o meu cabelo e o seu, e os nossos olhos também. E os olhos e cabeleiras dos nossos filhos, que vamos compor com músicas, se você voltar. Diz que volta. Tenho cerveja aqui, pra todos os gostos. E tenho eu, pra todos os gostos e quereres que forem seus. Se você quiser o mundo, eu boto ele todo dentro desse apartamento agora. Você não precisa trazer nada, além de carinho e você, pro nosso edredom.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2014


Sete anos depois eu finalmente percebi que talvez nunca tenha sido amor, de fato. Das coisas que me lembro sobre o que eu sentia por você, a certeza que me bate mais forte é de que eu rezava. Todos os dias. Religiosamente e tendo o coração o mais contrito possível. Eis o lado bom do meu desfortúnio: me levou a Deus. Não porque eu precisava pedir que Deus te trouxesse para mim, mas porque eu precisava dizer a Ele o quanto eu te amava e o quanto eu te queria feliz. Nas minhas orações, nunca era eu. Era você primeiro.
A partir daí, todo aquele meu altruísmo tem explicação. Amor que se doa até a dor, até depois da dor. E cada vez que você me humilhava, eu resistia. I Coríntios 13 era o meu lema. "Crer. Suportar. Esperar". Não se tratava mais do amor que eu sentia, mas da minha fé cega, que me fazia acreditar que nada importava, um dia, seríamos um. Eu tinha fé nisso. Eu tinha fé que Deus faria isso, que isso era a vontade d'Ele. Era uma fé cega num Deus que - graças a Deus - decidiu que eu ficaria melhor sem você. E estou melhor. Até hoje.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Sonho



- Sem sono?
- É. Não consigo dormir. Acho que é medo.
- Medo de que, exatamente?

Foi quando comecei a te falar do meu medo de dormir, e acordar de nós dois. De fechar os olhos e abrir outros olhos e não mais te ver. Dormir naquele instante e de repente ter meu velho travesseiro de pena de ganso sob a cabeça. Não leve a mal, eu amo meu travesseiro de pena de ganso, mas amo mais o seu peito sendo meu travesseiro. Porque ele é seu. Porque ele faz com que sua respiração e seus batimentos cardíacos sejam minha canção de ninar. Nada poderia me fazer dormir melhor e é justo por isso que eu não consigo pregar o olho. Porque morro de medo de ouvir meu despertador me chamando pra vida real.

- Morro de medo de acordar da gente quando eu for dormir.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Chá



Tem dias que eu acordo me doendo. Hoje foi um desses dias. Minha avó me ofereceu um chá de camomila, dizendo que apesar de não resolver, podia me ajudar com a minha dor de amor. E eu nem tinha dito nada sobre o que estava sentindo, mas devia estar escrito na minha testa, já que ela percebeu. Ela me serviu naquela louça fina da família, que eu herdaria um dia e onde pretendia servir bolo e chocolate quente aos nossos filhos, quando o inverno castigasse demais na sua cidade.
Naquele momento eu continuei sem dizer nada à minha avó, nem sobre o que estava sentindo, nem sobre coisa nenhuma. Fiquei ali apática, assistindo o chá esfriar, vendo a fumaça sumir na atmosfera da cozinha, o vapor virar gotículas, suando a borda da caneca. Fiquei vendo o açúcar se depositar no fundo da xícara, feito eu, amargando no fundo do meu poço. Fiquei sentada na cabeceira da mesa, pagando a minha conta.
É difícil lidar com uma dor que lateja no peito e irradia para os cotovelos, passeia pelo corpo todo, e muda de lugar tão rápido, que não te deixa perceber ao certo onde é que dói. Fazia frio em pleno verão nordestino. Um frio que vinha de mim. Eu só fazia piscar automaticamente os olhos, à medida que poças d'água se formavam neles. Eu batia minhas pálpebras uma na outra, pra escoar a água da minha chuva interna, se empoçando nas minhas calhas. Mas nem o processo de chover de dentro pra fora poderia me lavar dessa sujeira toda. Amor parado apodrece.
Vovó me diagnosticou com infecção passional. Disse que quando era moça, também teve seus momentos ruins. Pensei em explicar para ela o tamanho da minha desfortuna, quando sua doçura desgraçada atingiu o paladar da minha alma. Mas ela não entenderia. Ninguém que não te visse com os meus olhos entenderia. Ninguém além da gente entende, quando amar dói assim. Se eu tentasse falar, vovó ia me dizer que passa e eu não ia acreditar, embora já tenha passado outras vezes. 
Por fim, enxuguei as lágrimas com as costas das mãos e disse à minha avó que tudo que eu mais queria era só ser uma pessoa normal, dessas que amam, são amadas, comem, respiram e vivem. Ela me deu um beijo amoroso na testa, com cara de gente velha que conhece todas as esquinas da juventude, e estava me vendo sem nenhum glamour, com o salto agulha preso num bueiro entre a Tomázia e a Vigário Tenório. Burra, presa às minhas pedras. "Suas asas não são só enfeite. É hora de aprender a voar. Vá para o sul deste encanto, ou para o sudeste que melhor lhe couber", foi o que ela falou. Tenho dúvidas se nessa vida ainda descubro o que ela quis dizer. Antes do último gole de chá, percebi que nunca soube possuir asas.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Meias


Era você sorrindo, dizendo com graça o quanto somos parecidos. Era eu morrendo de medo que isso acabasse com a gente. Eu sempre toda insegura, assistindo você me amar, temendo que você não suportasse conviver comigo. Porque você sempre disse que eu era você de saias e maquiagem. E sempre ouvi dizer que ninguém aguenta os próprios defeitos, em outra pessoa. 
Mas tem também a parte que nossa história fez da minha vida o avesso do testamento "Amai ao próximo como a ti mesmo". Nunca fui muito boa de me amar, exceto quando comecei a amar você. Porque quando você chegou, eu não tive escolha senão te amar. É impossível não amar uma pessoa como você, basta que haja a sua presença no mundo. Sua existência é bálsamo aos corações sensíveis. E meu coração é muito sensível, apesar da falta de amor próprio. Deixei de me amar justamente por sensibilidade em excesso: dei todo o amor que tinha no peito,  não sobrou nem para mim. Desobedeci o mandamento. Amando, pequei. Mas quando você veio o amor voltou. E quando te amei, reaprendi a me amar. Porque amei em mim nossas manias, que se fizeram nossas, pois eram minhas e iguais às suas. Passei a amar a mim mesma como ao próximo. Amei a mim mesma como amo a você. Amei o você que há em mim. Obrigada.
Só que hoje me peguei com medo. Porque segundo as leis da física, os opostos é que se atraem. Mas você me disse que juntos, somos opostos ao mundo e não um ao outro. Somos uma bolinha de meias: um par junto, no avesso. No fundo, acho que você tem razão.